Desejo de autonomia: o caso da escova de dentes

Toda noite temos um ritual para colocar nosso filho na cama. A sequência de eventos começa logo cedo: Matias guarda os brinquedos, junto ao papai e mamãe, para então entrar no banho. Ivonete dá o banho no garoto, e após isso trabalhamos juntos para lavar o nariz. Eu sigo escovando os dentinhos do pequeno, vestindo-o para dormir, e o entrego à mãe, para mamar e ir para o berço. Essa é a prática diária, e Matias já desfruta da segurança que a rotina pode promover. Hábitos educam.

Mas nem tudo são flores no reino dos Porto. Existe um fenômeno incômodo que, junto à rotina diária, insiste em se manifestar repetidamente. Falo do caso da escova de dentes.

Após lavarmos o nariz de Matias, eu pego a escova de dentes, coloco aquele pinguinho de pasta de dente, e sigo para a escovação. Na verdade, acrescentei um item à rotina: antes de começar a escovação repito a seguinte frase — “primeiro o papai, depois você”. Por quê?

Matias sempre quer escovar os próprios dentes. Desde cedo revela a sua impaciência para com os outros, e manifesta o seu desejo de autonomia, sendo ele mesmo a cuidar de sua higiene bucal. Assim, tão certo como a rotina diária, uma sequência de eventos se dará: (1) eu falarei que escovarei primeiro, e depois darei a escova a ele; (2) eu tentarei escovar os seus dentes; (3) ele chorará e tentará tomar a escova de minhas mãos; (4) eu o repreenderei; (5) eu farei a escovação sob protestos; (6) finalmente, darei a escova a ele e o choro acabará; (7) ambos daremos boa noite à “senhora escova” e (8) iremos para o quarto.

Todas as noites o mesmo fenômeno acontece. A essa altura, eu já poderia ter mudado de tática, desistido de lutar e entregue o controle da escova ao garoto, ou poderia simplesmente ignorar os seus protestos e assumir a escova sem ligar para o seu choro, mas estou interessado em educá-lo. O desejo de autonomia revelado precisa ser transformado. Como?

Em última análise, não serei eu a transformar tal desejo. É o Senhor quem transforma corações. Mas sei que se eu for fiel hoje, estarei amando a Deus e ao meu filho. Daqui a algum tempo Matias não precisará mais que eu escove os seus dentes — ele terá o domínio da escova. Mas o meu desejo é que, mais do que isso, ele tenha internalizado um princípio no qual se submete à autoridade de seus pais, mesmo quando contraria a sua vontade.

É assim que funcionamos com Deus, não é verdade? Repetidamente Deus quebra a nossa vontade, ou nos diz “primeiro Eu, depois você”, e nós insistimos em protestar, chorar e espernear. Nós manifestamos o nosso desejo de autonomia, querendo que as coisas aconteçam no nosso tempo e do nosso jeito. Mas Deus, pacientemente, não nos entrega a escova.

Deleite-se no Senhor, e ele atenderá aos desejos do seu coração. (Salmos 37.4)

Deus está comprometido com a transformação do nosso coração. Por isso, frustará alguns de nossos desejos, até que o nosso amor seja Ele e nada mais. Esse processo é cansativo e doloroso. Cada desejo não atendido pode rasgar o nosso coração e nos levar das lágrimas ao desespero. Mas o fato de respondermos tão mal apenas fala que o nosso coração está no lugar errado.

[…]vocês serão o meu povo, e eu serei o seu Deus. Eu os livrarei de toda a sua impureza. (Ezequiel 36.28,29)

Eu não posso ter garantias de que o meu trabalho como pai terá o resultado desejado — não tenho garantias nem de que estarei vivo amanhã! — , mas com Deus é diferente. Por causa da morte de Cristo, e da obra do Espírito, temos a certeza de que seremos purificados de nosso desejo idólatra, e finalmente desfrutaremos do prazer de nos rendermos ao Senhor. A aliança de Deus não pode ser quebrada, e a escova, sinal de nossa rebeldia, será apenas uma lembrança da grande obra que Ele realizou em nós.