Podemos ouvir o carnaval?

Não se fala em mais nada. Como de costume. Televisão, portais de notícias na internet, placas na rua e o barulho em todo lugar indicam que o carnaval chegou. Mesmo com os gringos afirmando que o Brasil está festejando à beira do precipício, o povo continua a pular. A The Economist captou bem o risco do nosso país, mas não compreendeu a força do carnaval por aqui.

Os cristãos oferecem a sua resposta. A mais comum é a retirada para lugares mais desconectados, a fim de se concentrar em temas espirituais. (Nem sempre é o que acontece, mas a proposta é essa). A resposta da fuga comunica que os cristãos possuem outros interesses. Há quem busque a resposta do engajamento acrítico, produzindo versões cristãs da folia carnavalesca. O resultado é algum nível de entretenimento, mas uma identificação tão profunda com a festa cultural, que falha em perceber o quão comprometida ela está com aspectos contrários à Escritura. Então existem os engajamentos críticos. Os mais comuns, que já estão surgindo nas redes sociais, são as respostas moralistas ao carnaval. Identificando, basicamente os pontos problemáticos da festa, tais cristão lançam seus protestos ou avaliações negativas, demonstrando por que deveríamos rejeitar tal festividade.

A abordagem moralista tem o seu lugar. Existe espaço para esse material, que condena o carnaval e rejeita a festividade de maneira impetuosa. Mas seria essa a única abordagem possível de engajamento crítico?

Creio que não. De fato, acredito que a abordagem moralista, embora promova algum bem, também promove muito prejuízo para a mentalidade cristã, por ser, de maneira geral, superficial, e deixar de notar as questões fundamentais por trás dos fenômenos que condena. Os cristãos que prontamente condenam o rock’n’roll como demoníaco perdem a oportunidade de perceber o que a música está falando, por que ela está falando tais palavras, e como ela possui tanto apelo entre os jovens (seu público fundamental).

Algo semelhante acontece com o carnaval. Não proponho que entremos na avenida, compremos material das escolas de samba, ou mesmo gastemos muito tempo na internet em pesquisas sobre cada enredo. Mas nós podemos ouvir algo sobre a festa. Quem está falando? O que está falando? Por que está falando?

Quem nos ajuda nesse exercício é o antropólogo Roberto DaMatta. Em seu livro “O que faz o brasil, Brasil?” [1], apresenta aspectos que deveriam ser seriamente considerados pelo cristão brasileiro. A festa é mais do que mera exposição depravada de mulheres nuas, ela é parte da cultura nacional, e comunica algo sobre o nosso povo. Nas palavras do pesquisador, que, diga-se, não creio ser cristão:

[…] tanto a festa quanto a rotina são modos que a sociedade tem de exprimir-se, de atualizar-se concretamente, deixando ver a sua ‘alma’ ou o seu coração.[2]

Provérbios 20.5 ensina que “os propósitos do coração do homem são águas profundas, mas quem tem discernimento os traz à tona”. Roberto DaMatta está nos ajudando a discernir um pouco do coração do brasileiro ao nos indicar características do carnaval.

Para DaMatta, o carnaval é a festa “maior e mais importante, mais livre e mais criativa, mais irreverente e mais popular de todas” [3]. Como a mais popular, reflete o ápice da ruptura nacional com a rotina, e manifesta o desejo mais profundo do nosso povo.

Na descrição de DaMatta, o carnaval funciona como a suspensão do real, para adentrar um universo fictício com prazo definido. Trata-se de vivenciar o sonho de ter uma vida diferente, mesmo que em pequena escala e por poucos dias.

Sabemos que o carnaval é definido como “liberdade” e como possibilidade de viver uma ausência fantasiosa e utópica de miséria, trabalho, obrigações, pecado e deveres. Numa palavra, trata-se de um momento onde se pode deixar de viver a vida como fardo e castigo.[4]

O mundo de fantasia, dessa maneira, não reflete apenas desejos inusitados, mas o anseio por uma vida sem “fardo”, sem sofrimento. Se é verdade que há algo da “malandragem” presente em tal sonho, também é verdade que a festa carnavalesca é celebrada porque naqueles dias os problemas da vida comum são esquecidos. Existe um anseio profundo por paz.

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Mas a paz buscada não é apenas a ausência do sofrimento, como também a realização plena da satisfação humana. A cultura brasileira se apropriou da sensualidade como símbolo de tal plenitude. Por isso, no carnaval, a liberação sexual é reconhecida e festejada, e os símbolos mais presentes, por meio das tradicionais escolas de samba e sua exibição pública em diversas mídias, são de homens e mulheres exibindo o corpo seminu. DaMatta interpreta o fenômeno resgatando a figura de Dionísio, o deus grego das festas, do vinho, e dos prazeres.

A “catástrofe” que o carnaval brasileiro possibilita é a da distribuição teórica do prazer sensual para todos. Tal como o desastre distribui o malefício ou a infelicidade para a sociedade, sem escolher entre ricos e pobres, como acontece normalmente, o carnaval faz o mesmo, só que ao contrário. O Rei Momo, Dionísio, o Rei da Inversão, da Antiestrutura e do Desregramento, coloca agora uma possibilidade curiosa e, por isso mesmo, carnavalesca e impossível no mundo real das coisas sérias e planificadas pelo trabalho.[5]

Há, ainda, mais um item curiosamente mencionado por DaMatta. O carnaval não é apenas a ruptura com a rotina, a fuga do sofrimento e a busca por satisfação última. Também é ponto de integração social. Na avenida se encontram ricos e pobres, negros e brancos, patrão e empregado — pessoas que, na rotina, estariam distantes. Aqui a fantasia cumpre papel especial. É ela que permite a criação de espaços alternativos para o reencontro humano.

A fantasia liberta, des-constrói, abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais. Ela permite e ajuda o livre trânsito das pessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano torna proibitivo com as repressões da hierarquia e dos preconceitos estabelecidos. […] Se no mundo diário estamos todos limitados pelo dinheiro que se ganha (ou não se ganha…), pelas leis da sociedade, do mercado, da casa e da família, no carnaval e na fantasia temos a possibilidade do disfarce e da liberação.[6]

Assim se resume a festa nacional: uma fuga da rotina e do sofrimento, uma busca por paz e satisfação, o desejo de ser aceito e pertencer.

Enquanto descartamos a festa carnavalesca a priori, condenando a sua depravação sexual, deixamos de ouvir o clamor por trás da festa, que ecoa muito significativamente o clamor de todo homem.

A Escritura nos fala que a rotina haveria de ser penosa em muitos aspectos, como a necessidade do suor para se ganhar o pão (sustento)[7]. A Bíblia revela como o sofrimento passou a se fazer presente na vida humana, e como, de fato, tentamos dele fugir[8]. A Palavra de Deus anuncia que fomos criados com um conhecimento de Deus plantado em nós [9], e com o desejo pela eternidade[10]: isso se reflete em nosso desejo último por satisfação e plenitude. O texto sagrado nos ensina que fomos criados para viver em comunidade, mas o pecado produziu grandes rupturas que comprometem a vida social[11].

A busca dos carnavalescos é vã. Como se sabe, experimentarão a fantasia por alguns dias, e terão todo um resto de ano para sofrer sob a realidade. Porque nunca serão satisfeitos dessa maneira, repetirão o ritual anualmente, e até tentarão reproduzir o clima carnavalesco em micaretas e “carnavais fora de época”. “Nunca serão”, como diria o Capitão Nascimento.

Mas, se o barulho da avenida não for alto demais, podemos falar de uma resposta mais significativa de verdadeira a essa procura. Trata-se do Filho de Deus: Jesus. A Bíblia revela que o mundo experimenta tais problemas por causa do pecado, e que a solução para o pecado está no Cristo. Ele, sendo Deus, tornou-se homem, para viver a vida perfeita no lugar de pecadores; morrer no lugar deles; e ressuscitar para a restauração deles.

Esse mesmo Jesus, tendo cumprido aquilo que o Pai exigia para a redenção humana, anuncia que, como resultado de Sua obra, o sofrimento será extinto[12]. Ele anuncia que todo o que nEle crê tem satisfação plena (a figura que Jesus utiliza é a de rios de água viva fluindo do interior dos que nEle crêem)[13]. Ele revela que a salvação providenciada não é algo individual, mas é a formação de um povo — uma igreja — no qual existe verdadeira comunhão: ricos e pobres, negros e brancos, homem e mulher, patrão e empregado são reunidos[14].

Nessa comunidade o canto é intenso e vibrante. Não como resultado de uma fantasia, mas como celebração de uma nova identidade.

Notas:

[1] DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
[2] Ibid., p. 68.
[3] DaMatta, O que faz o brasil, Brasil?, p. 71.
[4] Ibid., p. 73.
[5] Ibid.
[6] Ibid., p. 75.
[7] Gn.3.19.
[8] Cf. Gn.3 e o livro de Jó.
[9] Cf. Rm.1 e 2.
[10] Ec.3.11.
[11] Cf. Gn.4: o episódio em que Caim mata Abel.
[12] Ap.21.4.
[13] Jo.7.38.
[14] Gl.3.28.