Não fuja da rotina

A rotina mata a relação?

De tempos em tempos, um mesmo conselho é repetido a jovens casais: “não deixem o relacionamento cair na rotina”. A ideia por trás é que um relacionamento que se tornou rotineiro acaba por se desgastar, tornando-se desinteressante e, eventualmente, morto.

É verdadeiro esse conselho?

Eu não sei dizer exatamente quando, nem como ele surgiu. Sei que é perfeitamente adequado ao nosso contexto, marcado por sentimentalismo, revolução afetiva e entretenimento.

A nossa época é, em muitos sentidos, sentimentalista. Nós acreditamos que os relacionamentos existem para nos fazer felizes, e que, se por algum momento não estamos no ápice de nossa empolgação emocional, há algo de errado na relação.

A revolução afetiva, que tem sido estudada e descrita pelo Pr. Guilherme de Carvalho, descreve o campo das afeições como umas fontes de identidade mais centrais para os indivíduos do nosso tempo. As afeições regulam quem somos e como agiremos. Assim, seremos guiados pelo que estamos sentindo no momento.

A cultura do entretenimento nos diz que precisamos estar continuamente experimentando algum tipo de diversão (em oposição à concentração). Precisamos sempre de uma nova dose de estímulo, senão morreremos de tédio. Por isso precisamos de novos vídeos no youtube, novos posts no facebook, novas fotos no Instagram, e mesmo com tudo isso, ainda corremos o risco de ficar “sem nada para ver”.

Quando esse conjunto de aspectos é assimilado por nós, passa a redefinir o modo como enxergamos a realidade e afeta os nossos relacionamentos. A regra sentimental e do entretenimento define como observaremos e responderemos às pessoas.

É assim que chegamos à conclusão estabelecida: a rotina mata, porque não estimula nossos sentimentos e causa tédio. Nenhum relacionamento sobreviverá a uma vida rotineira.

Só que não.

Embora tenhamos comprado tal pacote muitas vezes, existem dois aspectos que nos ajudam a repensar a questão:

1 Nós vivemos imersos em rotinas. Nossos hábitos e rotinas já existem, ainda que não os percebamos, e eles salvam a nossa vida em muitos aspectos. A rotina de escovar os dentes protege nossa saúde e nosso contato com as pessoas; a rotina de almoçar nos alimenta e dá forças para caminhar pelo dia; a rotina do sono revigora corpo e alma; as rotinas do modo como falamos, nossas saudações, nosso idioma, todas providenciam um ambiente seguro no qual podemos crescer. Sem tais rotinas nós definharíamos.

Alguém que queira aprender um instrumento musical ou passar em concurso público precisa de rotina de estudos; alguém que queira emagrecer precisa de rotina alimentar; alguém que queira participar de uma competição precisa de rotina de treinos, e sempre as rotinas funcionam para nos ajudar a crescer em áreas que não cresceríamos naturalmente.

É assim com os relacionamentos. A rotina é tanto um ambiente de segurança quando um treinamento intencional para o nosso crescimento.

2 Nós já conhecemos as pessoas que vivem guiadas pelas emoções e necessitadas de distração (diversão) constante: nós as chamamos de crianças. A maturidade está não em negar os sentimentos, mas em perceber que eles são parte da realidade, e não o todo. A maturidade está em perseverar quando não há empolgação, e em desenvolver concentração quando queremos nos distrair.

Há um último aspecto importante. Talvez você tenha chegado até aqui achando que eu sou contra “sair da rotina”. Nada disso!

É maravilhoso quebrar a rotina em uma viagem familiar, em surpresas e gestos inesperados. É maravilhoso ser criativo e espontâneo! Mas quem vive apenas de espontaneidade não consegue crescer. Por isso, valorizamos a criatividade e espontaneidade dentro do contexto mais amplo das rotinas que guardam os nossos relacionamentos. Isso nos fará permanecer firmes, mesmo quando estivermos cansados ou desanimados, pois sabemos que as emoções variam, mas a promessa permanece.